quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Resenha: “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago

RESENHA

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Por Andrei Venturini Martins
 
O romancista, dramaturgo e poeta português José Saramago é autor de diversas obras, mas em uma delas, denominada “Ensaio sobre a Cegueira”, o autor instiga o leitor a “olhar a visão” e, para tal tarefa, é preciso fechar os olhos, pois a visão não poderia julgar a si mesma. O autor começa o livro com uma imagem ordinária: a cidade barulhenta, trânsito pesado, pessoas disputando, a cada passo, um lugar na rua. Mas algo incomum acontece com um dos carros parados no semáforo: “[...] logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila está parado [...]”. (p. 11). Um morador destas megalópoles estranharia esta cena, pois todos estão sempre apresados, adivinhando o momento do sinal verde para sair em disparada: “[...] deve ser um problema mecânico qualquer, o acelerador solto [...]”.  (p. 11). Nada disso. O motorista abre a porta e diz: “Estou cego”. (p. 11). Desesperado, em prantos, o primeiro cego grita a mortalidade dos olhos. “[...] quem me diria, quando saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma fatalidade como esta.” (p. 13). A possibilidade da desgraça é sempre um fato na vida do outro, desde que este outro não seja “eu”. Foi assim que aconteceu o primeiro caso de cegueira dos muitos que haveriam de surgir.
Gradativamente uma espécie de mancha branca ocular (Cf. p. 11) espalhava-se de maneira tão acentuada que o caso poderia tornar-se uma “[...] catástrofe nacional [...]”. (p. 37). Eis o enredo da obra: efetivamente, a catástrofe atingiu proporções nacionais! Diante disso, além de descrever como o Estado em nome da humanidade pode tornar-se desumano, colocando tais discursos demasiadamente humanistas sobre suspeita, Saramago constrói uma antropologia do mal pelos personagens: “É desta massa que nós fomos feitos, metade indiferença e metade de ruindade”. (p. 40). O homem tem em sua estrutura o mal e, para acompanhar isso, o autor cria uma personagem que funcionaria como espiã da desgraça. Trata-se da esposa de um oftalmologista, homem honesto, sincero e fiel à mulher de sua vida. Ela acompanhará todos os cegos desafortunados que serão encarcerados em um manicómio. “Nesse caso, resta o manicómio, Sim, senhor ministro, o manicómio, pois que seja o manicómio, Aliás, a todas as luzes, é o que apresenta melhores condições, porque, a par de estar murado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se compor de duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outras para os suspeitos [...]”. (p. 46).  Mentindo sua cegueira, ela será a vista do leitor. Assim, outra “ordem” se constrói dentro do manicómio: em pouco tempo os lugar terá as primeiras discussões, brigas, roubo, racionalização da comida, lixo, doenças, mortes, facções criminosas, armas, mulheres estupradas, etc. É uma nova lógica. “Os cegos aprendem depressa a orientar-se [...]”.  (p. 86). Mesmo no manicómio – e não é sem razão que Saramago enterra os cegos neste local – a lógica do mal impera ao ponto de fazer a única personagem que vê gritar: “O mundo está todo aqui dentro”. (p. 102). A cegueira é transmitida nas mesmas proporções que o mal se espalha. Todos pretendem se salvar, mas como cegos, pisam uns sobre os outros. Todavia, neste caso há uma “desculpa”: quem pisa é cego. O ego cega o cego! A única personagem que parece ter compaixão é a esposa do oftalmologista: “[...] recordemos daqueles infelizes condenados que antes ainda viam e agora não vêem, dos casais divididos e dos filhos perdidos, dos lamentos dos pisados e atropelados, alguns duas e três vezes, dos que andam à procura de seus queridos bens e não os encontram, seria preciso ser-se de todo insensível para esquecer, como se nada fosse, a aflição da pobre gente”. (p. 118). Como viver deste modo, senão sendo cego? Quem suportaria sobreviver em tais circunstâncias? A animalidade havia tomado conta: homens violentos buscando salvar-se a si mesmos. Desta maneira, era preciso levantar uma norma. A máxima é fazer de tudo para não vivermos como animais. (p. 119). Todos concordam e só o esforço já concede esperança. Cumprir esta máxima é a nova vista dos cegos, pois a voz é a vista de quem não vê.
Saramago cria um mundo de cegos para mostrar o que é o mundo verdadeiramente. Assim dirá o oftalmologista cego: “[...] só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são [...]”. O mundo é um palco de seres se devorando, de modo que quando o mundo mostra-se como ele é todos ficam cegos. A esposa do oftalmologista é a única que consegue entender isso: em um mundo de cegos que tem um olho está condenado a ver as desgraças da existência. O medo destas visões cega. (Cf. p. 131). O que resta é uma vida animal na qual os homens devem fazer de tudo para não serem os animais que são. Lutam continuamente, no entanto, a luta não passa de um outro modo de cegueira.
A obra “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago é um convite a fazer-nos perceber nossa própria cegueira e, antes de tentar recuperá-la, que respeitosamente reconheçamos o heroísmo da pobre esposa do oftalmologista expresso no seguinte adágio:
“Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego [...]” (p. 135).
Livro: Ensaio sobre a Cegueira
Autor: José Saramago
Detalhes: Companhia da Letras, 1995, 312

 POR QUE A MULHER DO MEDICO NÃO FICOU CEGA?
No universo ficcional, todas as personagens temem muito mais a revelação do que realmente são, do que a sensação de impotência causada pela cegueira. A exceção nesse universo é a mulher do médico: ela nada teme.

«A mulher do médico disse consigo mesma, Comportam-se como se temessem dar-se a conhecer um ao outro. Via-os crispados, tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo, mas, curiosamente, as expressões eram semelhantes, um misto de ameaça e de medo, porém o medo de um não era o mesmo que o medo do outro, como também não o eram as ameaças.» (ESC, 49)

A babel de indivíduos de naturezas tão distintas quanto às suas origens dá à mulher do médico a impressão de que as distâncias que separam os seres no mundo exterior se encurtaram e a diversidade de problemas que afligem os homens se resumiu no instinto de sobrevivência. Essa impressão se resume a uma frase: «O mundo está todo aqui dentro» (ESC, 102).

A luta da mulher do médico para que os cegos da primeira camarata não se entreguem à barbárie não é uma apologia do passado, do «mundo civilizado» que conheciam, como pode parecer à primeira vista, mas o contraponto que há de evidenciar os sentimentos, as modulações de sentido, que nortearão as relações entre os cegos a partir da quarentena - a longa jornada do aprendizado da visão.

Aos cegos que encontra pelo caminho, a mulher do médico afirma: «Só estamos de passagem» (p.215). O escritor que passa a viver na casa do primeiro cego, igualmente, afirma: «Estou de passagem» (p.278). Esse alter-ego do autor que «inscreve palavras na brancura do papel», à guisa de sinais da sua passagem, diz à mulher do médico palavras que parecem ecoar do mundo externo à história narrada, onde autor, narrador e leitor transitam, como um apelo : «não se perca, não se deixe perder». Apelo este que se quer prolongamento da epígrafe: veja, não se deixe cegar.
págs.

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